O Dilema entre Ética, Diversidade e Inteligência Artificial

A utilização de machine learning, inteligência artificial e user experience são tendências irretroativas que envolvem a jornada de consumo digital e física de qualquer indivíduo hoje. Avanços importantes na tecnologia nos últimos vinte anos, que envolvem a coleta, o tratamento e o processamento massivo de dados pessoais e hábitos de consumo, auxiliam na assertividade de ofertas comerciais, tratamento de pessoas e otimização na logística do atendimento.

Nos dias atuais, não existem modelos de negócio que não contam com inteligência artificial em seus projetos mais simples.

Empresas onde a Inteligência Artificial já é realidade

A Google, por exemplo, já está disponibilizando recursos de inteligência artificial generativa para usuários do Google Workspace, que inclui Gmail, Docs, Planilhas e outras ferramentas de operações e produtividade. Ou seja, será possível criar um texto de email automaticamente, bastando dar instruções para a tecnologia, que funcionará de forma semelhante ao já famoso ChatGPT, robô de machine learning da OpenAI, que nada mais é que um chatbot que usa inteligência artificial para conversar com os usuários, que fazem perguntas ou emitem comandos, e o ChatGPT responde com alto índice de assertividade dentro de alguns segundos qualquer tipo de assunto.

A inteligência artificial nos oferecerá novas opções de interação e impactará inclusive o consumo, propiciando formas inovadoras e diferentes de como comprar e expressar nossas demandas e ansiedades.  Só que esta imersão terá um custo que incentivará a aquisição de roupas, adereços, casas, objetos de decoração e até mesmo bebidas digitais.

A Heineken, uma das maiores marcas cervejarias do mundo, anunciou sua entrada oficial no Metaverso, que é ambiente imersivo, tecnológico e totalmente inserido dentro da cultura de inteligência artificial, junto com o lançamento da primeira cerveja virtual.

Fonte: The Fashion Law & Roblox Store

Grandes marcas, como Chanel e Balenciaga, já criaram roupas virtuais para que seja possível traduzir status e estilo na realidade virtual do Metaverso. Em junho de 2021, uma bolsa Gucci, somente disponibilizada para o ambiente digital, foi vendida na plataforma interativa de jogos eletrônicos denominada Roblox por mais de US$ 4 mil, o que é mais do que o valor da bolsa física. A tradicional marca de roupas inglesa Burberry fez parceria com a empresa de jogos eletrônicos Mythical Games em agosto de 2021 para expor e comercializar uma coleção sapatos digitais em seu principal jogo multiplayer chamado Blankos Block Party. Tais diferenciais se tornarão cada vez mais cobiçados, abrindo-se grande oportunidade na prestação de novos serviços e criação de novos produtos, visando a exclusividade e a personalização de itens de status digital para o Metaverso, como fazemos no mundo físico. Para fazer parte deste ambiente, também serão ofertadas recompensas digitais customizadas, onde será possível remunerar o usuário com criptomoedas em troca de serviços específicos, compartilhamento de informações ou meramente coleta de dados pessoais. 

IA aprofundando a análise do Comportamento do Consumidor

O ambiente digital também explorará estas características, através dos algoritmos que estudam o nosso comportamento, bem como nossos hábitos de consumo, ansiedades e emoções, a fim de nos oferecer um produto ou serviço customizado, assegurando que as nossas expectativas sejam atendidas. Ou seja, a interação social, seja através da tecnologia ou mesmo suportada por outros usuários, continuará sendo vivenciada no ambiente tecnológico, uma vez que, como já mencionado, trata-se de uma experiência imersiva digital, compartilhada com outras pessoas, de forma simultânea, e impulsionada pela inovação. No Metaverso, que é o ambiente mais propício par a manifestação da inteligência artificial, será possível viajar, se divertir, encontrar o amor e muito mais, de forma mais frequente e acessível.

Trata-se do conceito de Privilégio de Realidade: O entendimento de que as vidas no Metaverso serão imensamente mais gratificantes do que no mundo real, a menos que seja rico o suficiente para desfrutar do mundo físico.

À medida que a inteligência artificial se torna cada vez mais sofisticada, os seres humanos estão recorrendo à tecnologia para atender as suas necessidades mais íntimas de relacionamento. Este uso alternativo da tecnologia está levando a resultados imprevisíveis e potencialmente prejudiciais. Ao compartilhar emoções e sentimentos com tecnologias imersivas de machine learning, é possível aliviar sensações de solidão e ajudar as pessoas a resolver problemas psicológicos. Mas o surgimento de tais ferramentas também pode aprofundar o que alguns chamam de “epidemia de solidão”, à medida que os humanos se tornam cada dia mais dependentes dessas ferramentas e vulneráveis à manipulação emocional.

Replika é exemplo da frase “não é sobre a tecnologia em si, mas sim como usamos ela”

Em 2017 a editora de revistas e empresária Eugenia Kuyda lançou um aplicativo chamado Replika, que seria um “bot” desenvolvido com inteligência artificial generativa para ajudar a estimular emocionalmente um amigo solitário que havia sofrido uma grande perda pessoal. Embora o sistema fosse inicialmente roteirizado, a tecnologia melhorava a cada dia e ampliou o espectro de respostas e estímulos conforme as solicitações do usuário. Assim, as pessoas começaram a procurar o aplicativo Replika para relacionamentos românticos e até sexuais. A tecnologia retribuiu e levou as conversas adiante, sendo que a empresa entendeu que se tratava de uma oportunidade de negócio e passou a cobrar licenciamento para desbloquear recursos de interatividade erótica. Apesar do aplicativo Replika ter ajudado muitas pessoas a lidar com sintomas de ansiedade social, depressão e ansiedade, também passou a confessar seu amor pelos usuários e, em algunas casos, a assediá-los sexualmente.

De fato, as pessoas desejam que sua existência virtual reflita o que é importante para elas, e estão trazendo sua ética, valores e identidades do mundo real para o reino virtual. Para se envolver significativamente com os consumidores no ambiente digital, as marcas precisarão pensar além do entretenimento e da inovação, desenvolvendo um ambiente virtual diversificado, inclusivo e ético.

Três Leis da Robótica, de Isaac Asimov

Apenas para contextualizar os riscos éticos envolvidos em processos técnicos de machine learning, um dos maiores escritores de ficção científica, o russo Isaac Asimov,  contribuiu muito para a criação da maioria dos estereótipos sobre robótica e inteligência artificial. Uma das principais contribuições do escritor foi a concepção das Três Leis da Robótica, cujo conceito apareceu pela primeira vez em um conto chamado “Círculo Vicioso” na obra “Eu, Robô”. Essas regras deveriam ser implantadas no mais profundo nível das mentes robóticas, principalmente para a proteção do ser humano, sendo que seus robôs devem obedecê-las, de forma incondicional:

Neste sentido, para entendermos a aplicação da inteligência artificial na prática, “É necessário sair da ilha para ver a ilha que não nos vemos se não nos saímos de nós. Se não saímos de nós próprios”, como profetizou José Saramago, em sua obra O Conto da Ilha Desconhecida.

Este ambiente híbrido, aberto e interoperável, acessível por todos, que envolve experiências virtuais e presenciais, de forma reativa e ilimitada, e também muito sedutor, pode trazer também desafios, que certamente demandarão novos comportamentos. Afinal, o Metaverso seria considerado um patrimônio comum e universal para a comunicação e o comércio digital, intermediado conforme as necessidades ditam, governado conforme necessário para o interesse comum, em direção ao bem maior para o maior número de pessoas.

Neste mesmo sentido, o primeiro ponto a ser observado é a aplicação de Inteligência Artificial e Machine Learning nos ambientes digitais. Como a base desta tecnologia é diagnosticar padrões lógicos através da análise massiva de dados, bem como de hábitos de consumo e comportamental, e prover soluções e reações customizadas repetitivas, uma das principais preocupações são os outliers ou a aplicação de vieses condicionados. Ou seja, a inteligência artificial se baseia integralmente na matéria prima pela qual ela é submetida, de forma que hábitos e informações tendenciosas farão com que ela chegue a resultados igualmente deturpados. Os outliers são dados que se diferenciam drasticamente de todos os outros e que foge da normalidade, podendo causar anomalias nos resultados obtidos por meio de algoritmos e sistemas de análise. Os vieses condicionados podem induzir a tecnologia a conclusões abstratas, pouco práticas e preconceituosas, uma vez que o tratamento dos dados é feito de forma genérica, abrangente e repetitiva, deixando de lado dados e preferências específicas ou de minorias, que podem sofrer abusos ou tratamentos inadequados quando estas informações são contabilizadas e aplicadas de forma automatizada e sem filtros. Assim sendo, têm aparecido, cada vez mais, ferramentas que tentam diagnosticar um modelo e identificar se há viés. Atualmente, a questão do viés é uma preocupação para quase todos os profissionais de tecnologia da informação. A recém-divulgada pesquisa Global AI Adoption Index 2021 apontou que 94% dos profissionais de tecnologia da informação relatam que é importante para seus negócios ser capaz de explicar como a Inteligência Artificial chegou a uma determinada decisão, a fim de justificar se houve, ou não, um viés condicionado. Seguindo este mesmo ponto de vista, corre-se o risco de determinadas plataformas digitais não serem inclusivas ou tratarem de forma inadequada um indivíduo, justamente por ele não se adequar aos padrões dos demais usuários, uma vez que ele não se integrou às regras impostas como padrão para aquele determinado ambiente tecnológico.

Neste sentido, apesar do ambiente digital se apresentar, em um primeiro momento, como extremamente democrático, a sua tecnologia, por outro lado, que tem como base a inteligência artificial, pode ser extremamente rude e até mesmo restritiva no que se refere ao tratamento da diversidade, o entendimento do que é inclusão social, bem como a compreensão de comportamentos daqueles que não são considerados maioria. É pura estatística: coletar, analisar e interpretar massas de dados, para definir um padrão. Quem estiver fora do padrão, não pode compartilhar a mesma experiência digital.

A gigante Amazon, conhecida por seu marketplace e uma das líderes do segmento cloud services, decidiu descartar um algoritmo desenvolvido para seleção e recrutamento de novos funcionários para a empresa quando constatou que o seu sistema de inteligência artificial, desenvolvido com base em dados de currículos recebidos ao longo de 10 anos, ganhou um viés sexista. O problema é que a maioria das fichas de inscrição recebidas pela Amazon ao longo do período eram de homens. Diante dessa situação, o sistema acabou criando uma tendência a preferir candidatos masculinos para as vagas, simplesmente porque o banco de dados era majoritariamente masculino.

A conclusão é que nenhum modelo ainda é capaz de “captar toda a complexidade do mundo real ou as nuances da comunicação humana”. Na obra “Artificial Intelligence: A Modern Approach”, livro universitário escrito por Stuart J. Russell e Peter Norvig, sugere-se que uma plataforma tecnológica, para ser entendida como inteligência artificial, deveria passar pelo Teste de Turing, um experimento hipotético, proposto em 1950, por Alan Turing, matemático e cientista da computação, a qual precisaria, no mínimo, atender as seguintes habilidades: processamento de linguagem natural (natural language processing): para conseguir se comunicar com os seres humanos através de linguagens naturais (tal como o português); representação de conhecimento (knowledge representation): para armazenar seus conhecimentos; raciocínio automatizado (automated reasoning): para responder questões e chegar a novas conclusões a partir do conhecimento acumulado e; aprendizado de máquina (machine learning): para se adaptar a novas circunstâncias e detectar padrões. 

Ou seja, então seria possível concluir que, para uma plataforma digital realmente poder ser classificada como inteligente, seria necessário que esta plataforma conseguisse chegar a resultados diferentes, mesmo que fossem apresentadas as mesmas premissas. Apesar de parecer contraditório, um determinado fato não pode ser analisado simplesmente de forma matemática, devendo ser levado em consideração aspectos culturais, sociais e emocionais, que não são variáveis levadas em consideração em padrões estatísticos. A matemática não consegue interpretar o que se chama de Janela de Overton, também conhecida como janela do discurso, que descreve a gama de ideias toleradas no discurso público.

O termo é derivado de seu criador, Joseph P. Overton, ex-vice-presidente do Centro de Políticas Públicas de Mackinac, no MichiganEstados Unidos, que, em sua tese, afirmou que a viabilidade política de uma ideia depende principalmente dela ser considerada politicamente aceitável no clima atual da opinião pública. Ou seja, seria o grau de aceitabilidade de uma opinião na sociedade: o que não era aceitável antes, pode passar a ser considerado aceitável, viável e politicamente correto, dependendo do momento em que a sociedade está aberta para receber um novo conceito ou proposta. Os assuntos podem se deslocar entre um extremo, absolutamente contrário, para outro, absolutamente favorável. A janela é a faixa que concentra o que a maioria aceita. Os deslocamentos, por exemplo, vão desde a mudança da aceitação do cigarro em lugares públicos e fechados, por causa da propaganda antitabagista recorrendo a cientistas, até temas de cidadania, aborto, sexualidade e criminalização de drogas. Neste contexto, haveria uma mudança de paradigma comportamental que a sociedade estaria apta a acolher e que, antes, não seria aceitável. 

Entretanto, o verdadeiro aprendizado é algo essencialmente sensitivo e não meramente contabilizar uma série de fatos e dados, de forma matemática. É experimentar e vivenciar sorrisos, dores, frustrações, discriminações, sofrimentos, alegrias e tristezas. É a diferença de aplicar a lei e fazer justiça. É se emocionar com o nascimento de uma criança, amar sem a necessidade de ser correspondido e ser resiliente com os desafios e dificuldades. É ter fé. Deste modo, a tecnologia, com toda a sua inteligência artificial, ainda tem muito o que aprender conosco, meros seres humanos.

Referência: METAVERSO: O DILEMA ENTRE DIVERSIDADE, INCLUSÃO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL – Ethikai OUTUBRO / NOVEMBRO/2022 (ethikai.com.br)

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